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Por Artur Voltolini, do Favela 247 – Começamos hoje uma série de entrevistas com moradores, ilustres ou anônimos, de diferentes favelas do Rio de Janeiro. O primeiro a ser entrevistado é o taxista Marcus Roberto de Abreu Rodrigues, 52, taxista e morador do Vidigal há 22 anos. Marcus nasceu em Guaraciaba do Norte, a 330 km de Fortaleza, e veio para o Rio de Janeiro trabalhar em restaurante, foi garçom por 17 anos no Chaika e no Gula Gula, tradicionais restaurantes da Zona Sul carioca.
Marcus fala sobre sua vinda para o Rio e sobre sua chegada ao Vidigal. Ele descreve a guerra entre fações rivais que assolou favela nos anos de 2002 e 2003, e dá suas impressões sobre as UPPs: "A UPP foi uma coisa excelente. Eu não gosto do Cabral, mas ele com a UPP salvou a vida de muita gente aqui no morro", embora critique a postura de alguns policiais: "Eu, como morador do morro, não sou tratado pela policia como gente, sou tratado com falta de respeito".
Marcus Roberto conta sobre como sua vida mudou nos últimos 12 anos, e embora critique o PT, defende o Bolsa Família, que segundo ele transformou o Nordeste e a cidade de onde veio: "Hoje lá o nordestino com 16, 17 anos, não tem mais a intenção de vir pra cá. Ele é obrigado a estudar. O cara não tendo que vir pra cá é menos gente com possibilidade de mendigar ou de entrar na bandidagem. O Bolsa Família deixou esse povo lá. Você anda hoje no Leblon e tá cheio de placa de emprego, precisam de entregador, de caixa. O Bolsa família segurou o povo na sua terra. E esse povo ficando lá, gastando o dinheiro lá, fez o lugar crescer", afirma. Macus também se orgulha de ter suas duas filhas fazendo faculdade. Leia abaixo à entrevista na íntegra.
Onde o senhor nasceu?
Nasci no Ceará, em Guaraciaba do Norte, a 330 km de Fortaleza. Meu pai tinha um sítio com dois engenhos, um de farinha e outro de rapadura. Sem televisão, sem luz elétrica. Eu estudei muito pouco, fiz só até a oitava série.
Por que veio para o Rio?
Eu trabalhava no sítio do meu pai, na roça mesmo, e achava o trabalho muito pesado. Com 19 anos vim passar um ano no Rio. Hoje a impressão que gente tem do Rio não é a que a gente tinha antigamente. O pessoal ia pro Rio e voltava com aquela pele bonita (trabalhar na roça deixa um “fuá” na pele). Quando eu via televisão tudo que passava era sobre Rio de Janeiro, Guanabara, e aquilo me empolgou.
Cheguei e fui trabalhar trabalhar em restaurante. A gente ia direto pra restaurante pra não ter que pagar pela comida. Eu não era pobre no Ceará, mas quando me mudei pro rio fiquei duro. Aqui eu virei mais um paraíba. Não importava de quem eu era filho, aqui todo mundo era igual. E eu achava o fim do mundo trabalhar pros outros [risos].
Vim morar na rua Sorocaba, em Botafogo. Era um pensionato, numa casa bem antiga. Já tinha um irmão morando lá. Fiquei nessa pensão quatro anos, de 1981 a 1985. Depois eu fui pra Rocinha, onde fiquei até 1992.
Como foi sua vida na Rocinha?
A Rocinha não me agradava muito não, eu tinha passado a vida toda num sítio. Achei estranho aquele ambiente. Tinha muita bandidagem e a Rocinha era muito suja. Mas como eu arrumei uma mulher que morava lá não teve jeito [risos]. Vim pro Vidigal em 1992. E no Vidigal estou até hoje, e não pretendo mais sair. Eu Moro no rampa do 14 [uma viela não carroçável que corta a parte baixa do morro ligando a Avenida Niemeyer até a João Goulart, principal rua do Vidigal].
E senhor presenciou a guerra?
Peguei a guerra de 2002 [entre Comando Vermelho (CV) e Amigos dos Amigos (ADA)], até saí daqui durante a guerra, mataram muita gente. Teve uma guerra antes, em 1996, entre eles mesmos. Nessa época eu fiquei, mas também morreu muita gente, muito bandido que a gente conhecia. Vi várias pessoas mortas. Quando teve a outra guerra, a de 2002, teve gente que foi embora e não voltou nunca mais. Eu fui pra Jacarepaguá, tinha comprada uma casa lá como investimento. Como estava todo mundo se mudando, e eu tinha duas filhas pequenas, nos assustamos e fomos pra lá, mas ficamos só um ano. Nós voltamos e o morro ainda estava em guerra, mas estava mais light. Mataram muita gente bem em frente a minha casa. Eles pegavam os caras lá de cima do morro e matavam aqui embaixo, pra que quem entrasse ou saísse da favela pudesse ver. E era gente conhecida, do tráfico. Não morria morador inocente não, eles sabiam quem estavam matando. E a guerra foi enfraquecendo até que parou.
O que mudou depois da guerra?
Depois que a ADA assumiu ficou mais tranquilo, tanto é que tinha morador que pedia pra que ADA continuasse. Na nossa visão de morador, os caras do CV eram mais violentos, matavam por bobeira. Já o pessoal do ADA expulsava o morador pra não ter que matar. Eles avisavam antes. Se fosse o CV você já sabe pra onde eles iriam... Nós ficamos aqui, mas com muito medo por minhas filhas, por minha mulher. Aqui no morro nós nunca tivemos problemas. Meu contato com o “movimento” era só licença pra entrar, bom dia e boa tarde.
O que o senhor acha das UPPs?
A UPP foi uma coisa excelente. Eu não gosto do Cabral, mas ele com a UPP salvou a vida de muita gente aqui no morro. Daqueles meninos com a idades das minhas filhas, que moravam perto de casa, de 15 só devem ter sobrado uns dois. Uns fugiram, a maioria morreu.
Antes os meninos iam para o tráfico, e as meninas iam para os vagabundos. Você percebia quando eles começavam a não ir pra escola. Naquela época o menino virava fogueteiro, depois olheiro, até que já andava armado. Eu já vi o Bope matando um menino de 16 anos, às cinco da tarde. Não vieram prender não, só matar mesmo. Ele era bonitinho, branquelinho do olho azul. O rifle era maior que ele.
Antes eu evitava andar no morro. Vai que um bandido falasse pra mim alguma coisa, e eu poderia me irritar, e ia dar problema. Eu comprava tudo lá embaixo. Hoje eu faço minhas compras no mercado daqui do Vidigal, sem nenhum problema. É dinheiro que fica no morro.
Quais foram as mudanças com a UPP?
Quando a UPP entrou teve um choque, ninguém estava habituado com aquilo. Agora se você cumpre a lei, as pessoas respeitam a lei. Esses meninos que hoje estão com 15, 17 anos, estariam todos no tráfico, e as meninas não estariam estudando, estariam todas buchudas. As que tinham 13 quando subiu a UPP, hoje estariam com 15 e já com um ou dois filhos.
Esse pessoal do morro que o Cabral salvou tinha que agradecer à Deus. A polícia sobe toda hora. Todo mundo sabe que ainda estão vendendo coisas por aí, mas agora é camuflado e sem arma. Dessa turma nova eu não conheço ninguém, nem vejo direito, mas sei que são bem novinhos.
O senhor tem alguma crítica à UPP?
A UPP tem uma coisa importante que ninguém fala: Eu, como morador do morro, não sou tratado pela policia como gente, sou tratado com falta de respeito. O policial te vê como se você fosse bandido. A polícia do morro tinha que ser preparada pra lidar com a gente, de grau de estudo baixo, porque a gente fala uma língua que eles não entendem. A meu juízo eles tinham que ter um preparo melhor pra lidar com a gente, mesmo com respeito e autoridade. Um dia eu chamei um PM de você e ele quase me bateu. A gente não sabe o linguajar dos caras.
Antes da UPP era pior, eles esculachavam muito o morador, hoje tá mais light, mas mesmo assim acho que eles são despreparados. Se a polícia tem um grau pra falar com um empresário, se ela tem um grau pra falar com um estrangeiro, pra trabalhar na favela ela também tem que ter um grau, uma tolerância. Eu moro há 22 anos no Vidigal, o policial pode perguntar sobre mim pra qualquer um, na dúvida liga pra alguém. O trabalhador não pode ser comparado com o bandido, e eles tratam todo mundo igual.
Quais melhorias o senhor deseja para o Vidigal?
Na favela falta saneamento básico, a coisa é séria. Não vale passar só na João Goulart e não entrar nos becos. Tem muito esgoto por aí, vala aberta. O governo faz uma obra hoje e amanhã o povo quebra. Hoje daria pra ter mais fiscalização. Tinha que ter assistente social também. E emprego, gente do morro pra trabalhar no morro. Pessoas que entendem do morro. Até os policiais da UPP poderiam ser do morro. Selecionava uma turma, e ia mudando aos poucos.
Sua vida mudou nos últimos 12 anos?
Nos últimos doze anos minha vida mudou para melhor porque tem mais serviço pra taxista. Tem muito turista brasileiro por aqui, coisa que não tinha antes. Muito mineiro, capixaba, paulista, nordestino. A impressão que dá é que o povo brasileiro tá mais rico. Nesse últimos 12 anos comprei quatro carros zero, fazendo a mesma coisa que eu fazia antes.
Eu tenho duas filhas, uma de 24 e outra de 18 anos. A de 24 faz faculdade de Direito na Estácio, e com desconto porque ela estudou em escola pública, acho que é do Prouni. E a de 18 estudou no Colégio Pedro II [tradicional e concorrido colégio público carioca], ela passou na prova pra quarta ou quinta série. Hoje ele entrou pra faculdade de medicina na UERJ. Na verdade ela passou pra quatro faculdades de medicina pelo Enem: Juiz de Fora, Sobral, Fortaleza e Rio da janeiro, e ela escolheu a daqui do Rio.
Elas estudaram bem mais que o senhor.
Na minha época se dizia: “O cara que que não rouba e nem herda, não enrica, é merda”. Era um ditado popular. Deixei de estudar porque era muito ruim de português. Eu estou satisfeito com o lugar onde cheguei, o que mais me agrada hoje é ter as minhas filhas com a cultura que elas têm. A mais velha é formada em inglês, e a menor estudou cinco anos de japonês.
Eu sou bom em trabalhar como garçom e bom em trabalhar como taxista. Tudo que eu faço é por porque gosto. Não faço o que não for de meu agrado.
Como está hoje a cidade de onde o senhor veio?
Guaraciaba melhorou muito. Apesar de ser no alto da serra, agora tem água encanada. O Ceará tem um divisão entre o sertão e a serra. O sertanejo é mais bravo, a vida é mais difícil, já o serrano tem fartura, a parte serrana é rica. Guaraciaba fica na Serra Grande da Ibiapaba, divisa com o Piauí.
Os meu irmãos foram vindo todos pra cá, e deixaram morrer os engenhos do sítio. Lá hoje os jumentos viraram motos. Carro de boi não existe mais, é tudo carroça com trator.
Por que Guaraciaba melhorou tanto?
Eu não gosto e nem voto no PT, mas o Bolsa Família mudou a vida do nordestino. Por exemplo: quem nunca passou fome não sabe o que é o tempero da comida. O tempero da comida é a fome. Com feijão e água você sobrevive, sem feijão e água não. E o bolsa família fez aquele povo sobreviver, principalmente os sertanejos, que são bem miseráveis. Hoje o nordestino com 16, 17 anos, não tem mais intenção de vir pra cá. Ele é obrigado a estudar. O cara não tendo que vir pra cá é menos gente com possibilidade de mendigar ou de entrar na bandidagem. O Bolsa Família deixou esse povo lá. Você anda hoje no Leblon e tá cheio de placa de emprego, precisam de entregador, de caixa. O Bolsa família segurou o povo na sua terra. E esse povo ficando lá, gastando o dinheiro lá, fez o lugar crescer.
O senhor não acha estranho criticar tanto o PT e elogiar o Bolsa Família?
Tem umas coisas que tu enguiça, é um negócio... Eu defendo isso pelo meu povo que tá lá. Peguei dia desses uma senhora do Leblon, rica, falando mal da Dilma. Eu perguntei: “Minha senhora, a senhora conhece o nordeste? É muito bom ser rico e falar, quero ver você conhecer aquilo lá. Ninguém nunca foi lá, sabe só quem foi? O PT. A senhora acha que chegando lá um cara rico e bonito, esse povo vai votar nele? Eles vão votar em quem ajudou eles”.
Eu tenho uma cisma com o PT, ela é bem antiga. Eu achava eles muito agitadores. Não entendo muito de política. Mas eles eram muito agitados antes de ser governo. É coisa minha. Eu já consegui muito voto pro PT, mas nunca votei nem vou votar no PT. É uma doideira total. [risos].
Em quem o senhor vai votar?
Eu não vou votar em ninguém, não vou estar no rio nas eleições, estarei no Ceará. Mas não votaria mesmo se estivesse aqui. Eu estou com três coisas na minha cabeça: Votarei em quem cuidar da saúde, votarei em que fizer escola, e nunca mais torcerei pra seleção brasileira. Aquele sete a um que me matou... Eu não vejo os políticos cumprindo o que prometem. Cuidar da saúde, essas coisas, independente de partido. Não vou votar porque sou teimoso, como bom cearense. O meu trabalho permitiu que minhas filhas sejam o que elas são hoje. Sempre tinha comida e roupa pra elas. Nunca fiquei desempregado no Rio de Janeiro.
Há muito preconceito com nordestino no Rio de Janeiro?
O preconceito com nordestino é igual o com índio. Me chamam de paraíba, pescoçudo, cabeçudo. Eu vejo o preconceito como sem fim. Eu moro na favela, sou nordestino, mas se você olhar o grau de cultura que minha filhas têm! Apesar da minha ignorância e da minha cabeça dura, tem umas coisas lá em casa que eu digo sempre: respeitar os outros, tratar todos bem, não ser desonesto, não ter vergonha do pai e nem de morar na favela.
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