486 visitas - Fonte: Pragmatismo Político
Há elementos extraordinários na política atual dos Estados Unidos em relação ao Iraque e à Síria que estão atraindo uma atenção surpreendentemente baixa. No Iraque, os EUA estão perpetrando ataques aéreos e mandando conselheiros e treinadores para ajudarem a conter o avanço do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (mais conhecido como Estado Islâmico) na capital curda, Arbil. Os EUA presumidamente fariam o mesmo se o EI cercasse ou atacasse Bagdá. Mas, na Síria, a política de Washington é exatamente oposta: há muitos opositores do EI no governo sírio e curdos sírios em seus enclaves do norte. Ambos estão sendo atacados pelo EI, que já tomou cerca de um terço do país, incluindo a maior parte de suas instalações de óleo e gás.
Mas a política dos EUA, da Europa Ocidental e do Golfo Pérsico é derrubar o presidente Bashar al-Assad, que vem a ser a política do EI e de outros jihadis na Síria. E se Assad cair, o EI será o beneficiário, já que será questão de vencer ou absorver o resto da oposição armada síria. Há uma falsa ideia em Washington e outros lugares de que existe uma oposição “moderada” síria sendo ajudada pelos EUA, pelo Qatar, pela Turquia e pelos sauditas. É, apesar disso, fraca e está enfraquecendo a cada dia. Logo o califado pode se estender da fronteira iraniana até o Mediterrâneo e a única força que pode possivelmente impedir que isso aconteça é o exército sírio.
A realidade da política dos EUA é apoiar o governo do Iraque, mas não a Síria, contra o EI. Mas uma razão para o grupo ter sido capaz de se tornar tão forte no Iraque é que ele pode extrair seus recursos e combatentes da Síria. Nem tudo o que deu errado no Iraque foi culpa do primeiro-ministro Nouri al-Maliki, como agora se tornou o consenso político e midiático no Ocidente. Os políticos iraquianos têm me dito nos últimos dois anos que o apoio estrangeiro à revolta sunita na Síria inevitavelmente desestabilizaria o país deles também. Isso agora aconteceu.
Ao continuar com essas políticas contraditórias em dois países, os EUA garantiram que o EI pudesse fortalecer seus combatentes no Iraque por meio da Síria e vice-versa. Até agora, Washington teve sucesso em não levar a culpa pelo crescimento do EI e em colocar toda a culpa no governo iraquiano. Na verdade, criou uma situação na qual o EI pode sobreviver e pode inclusive prosperar.
Usando a Etiqueta da Al-Qaeda
O grande aumento da força e do alcance das organizações jihadistas na Síria e no Iraque tinha, em geral, passado despercebido até recentemente pelos políticos e pelos meios de comunicação no Ocidente. Uma grande razão para isso é o que os governos ocidentais e suas forças de segurança estreitamente dizem que a ameaça jihadista é formada por forças diretamente controladas pela Al-Qaeda central. Isso os permite apresentar um quadro muito mais alegre de seu sucesso na chamada “Fuerra ao Terror” do que é a situação real.
Na verdade, a ideia de que apenas jihadis com os quais é necessário se preocupar são aqueles que têm a benção oficial da Al-Qaeda é ingênua e autoenganosa. Ignora o fato de, por exemplo, o EI ter sido criticado pelo líder da Al-Qaeda Ayman al-Zawahiri por sua violência e sectarianismo excessivos. Depois de conversar com uma série de rebeldes sírios jihadis não afiliados diretamente à Al-Qaeda no sul da Turquia no começo do ano, uma fonte me contou que “sem exceção, eles todos expressaram entusiasmo pelos ataques de 11 de setembro e torceram para que a mesma coisa que aconteceu nos EUA acontecesse na Europa”.
Grupos jihadis ideologicamente próximos à Al-Qaeda têm sido reclassificados como moderados dependendo de suas ações serem consideradas de apoio aos objetivos das políticas dos EUA. Na Síria, os estadunidenses apoiaram um plano da Arábia Saudita de construir uma “Fronte Sulista”, baseada na Jordânia, que seria hostil ao governo de Assad em Damasco e simultaneamente hostil aos rebeldes do tipo da Al-Qaeda no norte e no leste.
A poderosa, mas supostamente moderada Brigada Yarmouk, noticiada como o recipiente estratégico de mísseis antiaéreos da Arábia Saudita, deveria ser o elemento de liderança nessa nova formação. Mas diversos vídeos mostram que a Brigada Yarmouk frequentemente lutou em colaboração com a Frente al-Nusra, afiliada oficial da Al-Qaeda. Já que era provável que, no meio da batalha, esses dois grupos dividissem suas munições, Washington estava efetivamente permitindo que armamento avançado fosse entregue em mãos ao seu inimigo mais mortal. Os oficiais iraquianos confirmam que capturaram armas sofisticadas de combatentes do EI no Iraque que eram originalmente fornecidas por poderes estrangeiros para forças consideradas de oposição à Al-Qaeda na Síria.
O nome Al-Qaeda foi sempre aplicado com flexibilidade na identificação de um inimigo. Em 2003 e 2004, no Iraque, enquanto uma oposição armada iraquiana se formava, oficiais dos EUA atribuíram a maior parte dos ataques à Al-Qaeda, apesar de muitos terem sido perpetrados por grupos do partido Baas e nacionalistas. Propagandas como essa ajudaram a persuadir quase 60% dos votantes dos EUA, antes da invasão do Iraque, que existia uma conexão entre Saddam Hussein e os responsáveis pelo 11 de setembro, apesar de não existir qualquer evidência disso. No próprio Iraque, e, na verdade, no mundo muçulmano inteiro, essas acusações beneficiaram a Al-Qaeda ao exagerar seu papel na resistência à ocupação estadunidense e britânica.
Uma técnica de relações públicas exatamente oposta foi usada pelos governantes ocidentais em 2011, na Líbia, quando qualquer semelhança entre a Al-Qaeda e os rebeldes patrocinados pela OTAN lutando para derrubar o líder líbio Muammar Kadafi foi minimizada. Apenas aqueles jihadis que tinham uma ligação operacional direta com o “coração” da Al-Qaeda, Osama bin Laden, foram considerados perigosos. A falsidade do argumento de que os jihadis opositores a Kadafi na Líbia eram menos ameaçadores que aqueles em contato direto com a Al-Qaeda foi forçosamente e tragicamente exposta quando o embaixador dos EUA Chris Stevens foi assassinado por combatentes jihadistas em Bengasi em setembro de 2012. Esses eram os mesmos combatentes louvados pelos governos e pela mídia ocidental por seu papel no levante contra Kadafi.
Imaginando a Al-Qaeda como a Máfia
A Al-Qaeda é uma ideia mais que uma organização, e isso é o caso há muitos anos. Por um período de cinco anos depois de 1996, recrutou pessoas, recursos e campos no Afeganistão, mas eles foram eliminados depois da queda do Talibã em 2001. Subsequentemente, o nome Al-Qaeda se tornou majoritariamente um grito conjunto, uma série de crença islâmicas centradas na criação de um Estado islâmico, na imposição da charia (conjunto de leis religiosas), no retorno aos costumes islâmicos, na subjugação da mulher e no travamento de uma guerra santa contra outros muçulmanos, notadamente os xiitas, que são considerados hereges que merecem morrem. No centro dessa doutrina de guerra está a ênfase no autosacrifício e no martírio como símbolo de fé e comprometimento com a religião. Isso resultou no uso de crentes não treinados, mas fanáticos, como homens-bomba, com um efeito devastador.
Sempre foi do interesse dos EUA e de outros governos que a Al-Qaeda fosse vista como tendo uma estrutura de comando e controle como um mini Pentágono, como a máfia na América. Essa é uma imagem confortante para o público porque grupos organizados, por mais demoníacos que sejam, podem ser encontrados e eliminados por meio da prisão e da morte. É mais alarmante a realidade de um movimento cujos adeptos se autorecrutam e podem surgir em qualquer lugar.
A reunião de militantes de Osama bin Laden, que ele não chamava de Al-Qaeda até depois de 11 de setembro, era só um dos muitos grupos jihadistas de 12 anos atrás. Mas, hoje, suas ideias e métodos são predominantes entre os jihadis por causa do prestígio e publicidade que ganharam depois da destruição das Torres Gêmeas, da guerra no Iraque e da demonização de Washington como a fonte de todo o mal estadunidense. Atualmente, há uma diminuição das diferenças nas crenças dos jihadis, apesar de eles serem ou não formalmente ligados à Al-Qaeda central.
Não é surpresa que os governos preferem a imagem fantasiosa da Al-Qaeda porque lhes permite cantar vitórias quando consegue matar seus membros e aliados mais conhecidos. Comumente, aqueles eliminados ganham postos quase militares como “chefe de operações” para aumentar o significado de sua morte. A culminação desse aspecto fortemente propagandeado, mas, em grande parte, irrelevante da “Guerra ao Terror”, foi a morte de Bin Laden em Abbottabad, no Paquistão, em 2011. O fato permitiu que o presidente Obama aparecesse para o público estadunidense como o homem que presidiu a captura do líder da Al-Qaeda. Em termos práticos, no entanto, sua morte teve pouco impacto nos tipos de grupos jihadistas da Al-Qaeda, cujas maiores expansões aconteceram subsequentemente.
Ignorando os Papéis da Arábia Saudita e do Paquistão
As decisões-chave que permitiram a sobrevivência da Al-Qaeda e sua expansão posterior foram feitas nas horas imediatamente posteriores ao 11 de setembro. Quase todos os elementos significativos no projeto de lançar aviões nas Torres Gêmeas e em outros prédios icônicos dos EUA remontavam à Arábia Saudita.
Bin Laden era um membro da elite saudita, e seu pai tinha sido um associado próximo da monarquia saudita. Citando um relatório da CIA de 2002, o relatório oficial de 11 de setembro diz que a Al-Qaeda, para seu financiamento, dependeu de “uma variedade de doações e arrecadações, majoritariamente nos países do golfo Pérsico e da Arábia Saudita”.
Os investigadores do relatório encontraram seu acesso limitado ou negado ao buscar informações sobre a Arábia Saudita. E o presidente George W. Bush aparentemente nunca achou necessário responsabilizar os sauditas pelo que aconteceu.
A saída de sauditas idosos dos EUA, incluindo parentes de Bin Laden, foi facilitada pelo governo dias depois de 11 de setembro. Foi ainda mais significativo que 28 páginas do Commission Report — o relatório oficial sobre o 11/9 — sobre a relação entre os agressores e a Arábia Saudita tenham sido cortadas e nunca publicadas, apesar da promessa do presidente Obama de fazê-lo, por motivos de segurança nacional.
Em 2009, oito anos depois de 11 de setembro, um telegrama diplomático da secretária de Estado Hillary Clinton, revelado pelo Wikileaks, dizia que as doações da Arábia Saudita constituíam a fonte mais significativa de financiamento dos grupos terroristas sunitas mundialmente. Mas, apesar de esse reconhecimento privado, os EUA e os europeus ocidentais continuaram indiferentes aos pregadores sauditas cujas mensagens se espalharam para milhões por meio da TV por satélite, do YouTube e do Twitter, clamando pela morte de xiitas como hereges. Esses chamados chegavam conforme as bombas da Al-Qaeda estavam massacrando pessoas nos bairros xiitas do Iraque. Uma linha fina em outro telegrama diplomático do Departamento de Estado, no mesmo ano, diz: “Arábia Saudita: Antixiismo como Política Externa?”. Agora, cinco anos depois, grupos apoiados pelos sauditas têm um histórico de sectarismo extremo contra muçulmanos não sunitas.
O Paquistão, ou melhor, a inteligência militar paquistanesa representada pela ISI (Inter-Serviçios de Inteligência), era outro parente da Al-Qaeda, do Talibã, e de movimentos jihadistas em geral. Quando o Talibã estava se desintegrando sob o peso do bombardeio estadunidense de 2011, suas forças no norte do Afeganistão foram encurraladas por forças contra o Talibã. Antes que eles se rendessem, centenas de membros da ISI, treinadores militares e conselheiros foram apressadamente evacuados pelo ar. Apesar da evidência clara do patrocínio do Talibã e dos jihadis em geral pela ISI, Washington se recusou a confrontar o Paquistão e, assim, abriu o caminho para o ressurgimento do Talibã depois de 2003, que nem os EUA nem a OTAN conseguiram reverter.
A “Guerra ao Terror” falhou porque não mirou no movimento jihadista como um todo e, acima de tudo, não mirou na Arábia Saudita e no Paquistão, os dois países que fomentaram o jihadismo como uma crença e um movimento. Os EUA não o fizeram porque esses países eram aliados importantes que não queriam ofender. A Arábia Saudita é um mercado enorme para as armas estadunidenses, e os sauditas cultivaram, e, em algumas ocasiões, compraram membros influentes da classe política dos EUA. O Paquistão é um poder nuclear com uma população de 180 milhões e um exército com ligações próximas ao Pentágono.
O ressurgimento espetacular da Al-Qaeda e seus desdobramentos aconteceu apesar da enorme expansão dos serviços de inteligência estadunidense e britânico e de seus orçamentos depois do 11 de Setembro. Desde então, os EUA, seguidos de perto pelo Reino Unido, travou guerras no Afeganistão e no Iraque e adotou procedimentos normalmente associados a Estados policiais, tais como prisão sem julgamento, rendição, tortura e espionagem doméstica. Os governos travam a “Guerra ao Terror” dizendo que os direitos dos cidadãos individuais devem ser sacrificados para garantir a segurança de todos.
Face a essas medidas controversas de segurança, os movimentos contra quem elas foram orquestradas não foram derrotados, mas ficaram mais fortes. Na época do 11 de Setembro, a Al-Qaeda era uma organização pequena, geralmente ineficaz; em 2014 grupos do estilo da Al-Qaeda são numerosos e poderosos.
Em outras palavras, a “Guerra ao Terror”, que delineou o cenário político de boa parte do mundo desde 2001, evidentemente falhou. Antes da queda de Mosul, ninguém prestava muita atenção.
Esse artigo, que originalmente foi publicado no TomDispatch, foi extraído do primeiro capítulo do novo livro de Patrick Cockburn The Jihadis Return: ISIS and the New Sunni Uprising (O Retorno dos Jihadis: o Estado Islâmico e o novo Levante Sunita, em tradução livre), com agradecimento especial à sua editora, OR Books. A primeira seção é uma nova introdução escrita para o TomDispatch. Tradução: Opera Mundi
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