794 visitas - Fonte: Rede Brasil Atual
Lideranças indígenas do povo Guarani da capital paulista criticaram hoje (25) a “omissão” do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, pela não assinatura de portarias declaratórias de demarcação de terras indígenas. Davi Guarani, da aldeia Tekoa Pyau da Terra Indígena Jaraguá, na zona norte de São Paulo, lembrou que o governo da presidenta Dilma Rousseff tem números baixos na questão da homologação de demarcação de terras. “O ministro tem sido omisso. Isso leva ao desespero centenas de indígenas que vivem aqui. Parece que ele está testando nossa força. Neste ano, nenhuma portaria declaratória foi assinada”, criticou.
O coordenador da Comissão Guarani Yvyrupa, Marcos Tupã, morador da Terra Indígena Tenondé Porã, em Parelheiros, zona sul de São Paulo, afirmou que a documentação para demarcação de uma área de 15 mil hectares na região está pronta há dois anos e, até agora, a portaria não foi assinada pelo ministro. “Hoje, vivemos com 1.500 pessoas em 54 hectares. Não é possível o povo Guarani se manter nessas condições, mas o ministro não assinou. Ninguém fala nada e nosso povo está sofrendo”, explicou.
As declarações foram dadas durante um protesto realizado por 150 indígenas Guarani, em frente ao Tribunal Regional Federal de São Paulo (TRF-3), na avenida Paulista. Eles tomaram a avenida numa caminhada desde o Museu de Arte de São Paulo (Masp) até o TRF-3, cantando, em língua materna: "Vamos caminhar/Sem desviar do caminho/Vamos buscar força espiritual/Para fortalecer a nossa luta."
Esta é a quarta manifestação de guaranis reivindicando as demarcações desde agosto do ano passado. Eles já ocuparam o Museu Anchieta, no Pátio do Colégio, centro da capital, e bloquearam a rodovia Anhanguera, em 2013.
No ato, estava em pauta outra preocupação que os tem perturbado: a reintegração de posse de uma área de 2,5 hectares ao lado da Terra Indígena Jaraguá, que, com 1,7 hectare, é a menor do país e está ocupada há 17 anos.
Os indígenas reivindicam que o desembargador André Nekatschalow mantenha a suspensão da reintegração de posse, que estava marcada para dia 27, mas foi suspensa no dia 21 deste mês. O local foi reconhecido pela Fundação Nacional do Índio (Funai) como área de ocupação tradicional e o processo deve ser enviado ao Ministério da Justiça em 10 dias. O desembargador volta de férias no próximo mês e vai retomar a análise do pedido de reintegração de posse.
A área que é objeto do questionamento judicial foi ocupada porque a terreno ocupado inicialmente, de 1,7 hectare, não comporta o aumento da população e as necessidades essenciais da cultura Guarani, como cultivo de alimentos, colheita de ervas, pesca e extração de madeira para construção das moradias. Mesmo o total de 4 hectares das duas áreas somadas já não é suficiente para a população de 700 pessoas, das quais 400 são crianças de 0 a 12 anos.
O cacique da aldeia Tekoa Pyau, Vítor Fernandes Guarani, ressalta que se a portaria for assinada pelo ministro estaria resolvida boa parte da questão, pois isso anularia o processo da reintegração de posse. “A reintegração nos assusta, pois não teremos a menor condição de colocar todos na terra de 1,7 hectare. O povo aumentou muito e já hoje não temos condições dignas de plantar, morar e garantir nossa sobrevivência”, explicou.
Os indígenas protocolaram uma carta endereçada ao desembargador com desenhos das crianças da aldeia. “O desenho das nossas crianças expressa o apego pela aldeia do Tekoa Pyau e o nosso vínculo indissolúvel com a nossa terra tradicional. Não temos outro lugar pra ir”, diz um trecho do documento.
As áreas reivindicadas para demarcação e consequente ampliação são contíguas aos territórios indígenas do Jaraguá, na zona norte, e Tenondé Porã, na zona sul. As duas já foram reconhecidas pela Funai como de ocupação tradicional dos povos indígenas.
Elas passaram por estudos de natureza etno-histórica, antropológica, ambiental, cartográfica e fundiária. Com a demarcação, a Terra Indígena Jaraguá passaria de 1,7 hectare para 532 hectares. E a Tenondé Porã passaria de 54 para 15 mil.
A documentação da Tenondé Porã foi concluída em 2012 e já está no Ministério da Justiça, aguardando a assinatura de Portaria Declaratória pelo ministro Cardozo. Já o processo da terra Jaraguá foi concluído em 29 de abril deste ano e será encaminhado ao MJ em dez dias, como informou a assessoria de comunicação da Funai.
Território indígena
A liderança indígena Sônia Aramari rechaça argumentos sobre a ancestralidade da terra reivindicada pelos guaranis. Os indígenas estão no local desde os anos 60. “Dizem que não somos povo tradicional destas terras. Se você for ver bem, toda São Paulo é terra tradicional. O povo indígena não chegou depois. Nem por acaso”, disse, lembrando que, no passado, as áreas eram ocupadas por indígenas que foram expulsos por grupos ligados a atividades de mineração.
As demarcações colocariam as terras indígenas em sobreposição às áreas dos parques estaduais do Pico do Jaraguá, na zona norte, e Serra do Mar, na zona sul. “Isso não é um problema porque já existe legislação que possibilita o desenvolvimento de planos de manejo compartilhado das áreas”, destacou Marcos Tupã.
O povo Guarani ressalta que, hoje, sem a demarcação, não pode entrar nas áreas de preservação para buscar madeira, frutos ou ervas. “Corremos o risco de ser presos. A legislação de preservação é muito restritiva e não compreende o manejo como parte natural da convivência com a natureza. Sem a atuação dos indígenas, não haveria mata preservada. As áreas de melhor conservação são aquelas onde os indígenas estão, onde existe manejo”, contou Sônia.
Ao mesmo tempo, a cultura Guarani não compreende a “domesticação” das espécies, explica Davi Guarani. “As ervas, as árvores, não podem ser domesticadas. Nhanderu, Deus na cultura Guarani, as colocou lá. Tem o lugar certo para cada uma. Não é a gente que decide onde elas vão nascer”, ressaltou. Por isso, os índios têm a necessidade de viver em áreas onde a mata seja pujante e preservada.
A água de fonte natural também é fundamental para os guaranis. “Nhanderu deixou terra e água para Guarani. Não faz sentido pagar água, ter ela do governo, com cloro”, explicou Sônia. A água do ribeirão dos Lavras, que passa próximo das aldeias atuais, está poluída com esgoto residencial das construções feitas depois da chegada deles.
As casas são feitas de madeira e têm chão de terra. O ideal seria a construção com madeira, terra e sapê, planta de folhas largas usadas para o teto das moradias. Isso não é possível. Muitas casas são feitas de pedaços de madeira de vários tamanhos, pois os índios não podem retirar madeira da área de preservação. Outras foram construídas com o apoio da Organização Não Governamental Um Teto para Meu País e são mais estruturadas.
No local demarcado, existe uma unidade de saúde indígena e uma escola estadual. Na área que pode ser reintegrada, há também um Centro de Educação e Cultura Indígena (Ceci) da prefeitura de São Paulo, onde as crianças têm educação primária em língua materna e português. Os guaranis pediram um posicionamento do Executivo municipal sobre a questão da reintegração de posse, mas não tiveram retorno.
Por esses motivos, os indígenas retomaram, há 15 dias, uma área na região do bairro Sol Nascente, no lado oposto do Pico do Jaraguá, em relação as aldeias existentes hoje, para começar uma nova aldeia. A área já havia sido ocupada em 2005, mas foi reintegrada. Depois, foi ocupada por sem teto, que construíram casas de alvenaria e desmataram parte do local. O grupo também foi despejado.
Somente dez famílias permanecem no terreno e estruturam as novas moradias. Elas retiram o entulho das casas dos “juruá”, que é como se referem aos brancos. A criação da nova aldeia não é um processo simples de ocupação do território. Existem vários rituais realizados, que devem ser iniciados pelo cacique Ari Guarani, fundador da aldeia, em 2005. As famílias que quiserem viver no local precisam da aprovação dele.
Um dos principais processos é a construção do Opy, a casa de reza, onde são realizados batismos, reuniões, funerais e repassados ensinamentos e conselhos do Pajé da tribo. “Toda a aldeia precisa de um Opy. Se não tem, o povo fica fraco”, enfatiza Sônia.
A área da aldeia Sol Nascente tem 72 hectares, mata densa, lagoa e uma nascente de águas limpas. Também está incluída no território de 532 hectares que aguarda demarcação. “As crianças precisam de espaço maior, senão ficam estressadas, agoniadas. Ali vão se relacionar com a natureza. Vou poder repassar meus conhecimentos. Isso é fundamental para a preservação da nossa cultura”, argumentou o cacique Ari.
De acordo com o cacique, a nova área tem terras boas para plantio e os indígenas pretendem ter hortas de ervas e de comestíveis, como milho guarani, batata doce e mandioca, além de distribuir sementes de árvores frutíferas e as utilizadas para artesanato.
Assim, o povo Guarani espera retomar, em certa medida, a sua essência cultural, que é sufocada pela situação atual. “Não faz sentido para guarani ganhar dinheiro. Queremos e sabemos como viver na terra e da terra. Só se caça na época certa. E nunca uma fêmea. E é só pra comer, nunca para vender. As árvores também. Elas têm tempo certo para cortar e para distribuir sementes. Tudo no mundo está interligado”, conclui Sônia.
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