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Não há médico de plantão, falta projeto terapêutico e existem agentes penitenciários trabalhando em uma instituição não penal, o que proibido
São Paulo — As grades, os muros de mais de cinco metros de altura e o aviso na parede alertando “área de segurança” indicam que o complexo pode ser um presídio, mas não é. Trata-se de um suposto hospital psiquiátrico do governo de São Paulo. Atrás do forte esquema de proteção estão encarcerados, por tempo indeterminado, cinco jovens infratores "diagnosticados" com transtorno de personalidade antissocial. Lá eles não cumprem pena judicial nem recebem tratamento médico.
A 'Guantánamo psiquiátrica' paulista foi criada pelo governador-tampão Cláudio Lembo (DEM), que governou estado de abril a dezembro de 2006, e mantida por seus sucessores, José Serra (2007-2010) e o atual governador Geraldo Alckmin, ambos do PSDB. Desde o ano passada, uma ação judicial pede o fechamento do "hospital" por desrespeito aos direitos constitucionais.
Os internos na chamada Unidade Experimental de Saúde (UES), localizada na Vila Maria, na zona norte de São Paulo, são egressos da Fundação Casa que cometeram atos infracionais considerados graves e que já cumpriram as medidas socioeducativas previstas em lei. Sem terem praticado novos crimes, eles continuam detidos de forma "preventiva" – e aparentemente perpétua.
Não há médico de plantão, falta projeto terapêutico e regimento interno. No interior da unidade, trabalham agentes penitenciários, o que não é permitido por lei, já que trata-se de uma instituição não penal.
Estas irregularidades motivaram a Procuradoria da República de São Paulo, entidades pró-direitos humanos e o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo a moverem uma ação civil pública exigindo o fechamento da unidade.
“O tratamento que tem sido dispensado a esses jovens é medieval. São encarcerados sem o devido processo legal, por tempo indeterminado, em estabelecimento que não lhes proporciona tratamento adequado aos distúrbios de que são portadores”, diz a petição inicial do processo. “Além de estarem sendo responsabilizados duas vezes pela prática de um mesmo fato, a internação na UES se dá por tempo indeterminado, como se fosse perpétua”.
De acordo com a petição, em março de 2013 os jovens contavam com atendimento psiquiátrico, porém apenas às quintas-feiras, por meio período, com um psicólogo, um enfermeiro e dois auxiliares de enfermagem. A RBA solicitou o quadro de pessoal atualizado para a Secretaria de Estado da Saúde, responsável pelo local, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
“Nem todos os jovens tinham um diagnóstico no início da investigação. Eles não têm uma avaliação médica periódica. Do jeito que está eles vão ficar lá para sempre. Estão segregados”, diz o procurador regional dos Direitos do Cidadão, Jefferson Aparecido Dias. “A equipe é mais de segurança do que de saúde. A secretaria diz que tem um médico, mas nunca o encontramos lá.”
As práticas irregulares resultaram em duas inspeções da Organização das Nações Unidas (ONU) à unidade. A primeira delas, realizada em 2011, feita pelo Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, “recomenda que a unidade de saúde experimental seja desativada”. A outra, feita em 2013 pelo Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias, alerta que “não há revisão judicial desses casos” e que “para responder a pressão social e da mídia” foi utilizada “uma lei de 1930”.
Não existe destinação orçamentária especifica para a Unidade Experimental de Saúde no orçamento do governo estadual de 2013. O estabelecimento não consta no organograma da Secretaria Estadual de Saúde e não está inscrito no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde. Segundo o Ministério da Saúde, responsável pelo cadastro, o registro só é obrigatório se a unidade receber financiamento do governo federal. O processo aponta que os recursos para a unidade são do Tesouro do Estado.
Histórico
A Unidade Experimental foi criada pela Portaria Administrativa 1.219, de 2006, pelo governador Claudio Lembo, sob responsabilidade da Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (Febem), atual Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Casa). Ela seria destinada para adolescentes de 12 a 17 anos, do sexo masculino, com tendência antissocial.
O real motivo era mais específico: receber o jovem conhecido por "Champinha". Em 2003, ele e quatro adultos sequestraram e mataram o casal de estudantes Liana Friedenbach e Felipe Caffé, que acampavam na cidade paulista de Embu-Guaçu. O caso teve ampla repercussão na mídia.
"Champinha", acusado apenas pela morte da garota, tinha então 16 anos. Ele foi condenado a cumprir três anos de medida socioeducativa, pena máxima prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Às vésperas do término da internação, o Ministério Público solicitou a conversão da pena na chamada medida protetiva de tratamento psiquiátrico com contenção. Assim, a justiça paulista decidiu mantê-lo internado até os 21 anos.
Na iminência do fim da segunda medida protetiva, o Ministério Público de São Paulo entrou com um pedido de interdição civil e internação hospitalar compulsória, no Fórum de Embu Guaçu, que foi acatado. Assim, o jovem foi transferido em 2007 para a Unidade Experimental de Saúde, onde foi o primeiro interno.
“Todos os meninos têm laudos médicos no mínimo contraditórios ou opostos. Nenhum deles tem um laudo que diga qual é o tratamento”, conta o advogado Daniel Adolpho, que defendeu "Champinha" e hoje que acompanha a ação civil pública contra a unidade.
“Se você tem um sintoma e vai ao médico, ele te avalia, dá o diagnostico e indica um tratamento. No caso dos meninos, parou em uma etapa anterior. Criou-se um diagnóstico, emprestado do modelo prisional, mas não indicam tratamento.”
No mesmo ano de 2007, o então governador de São Paulo, José Serra (PSDB), transferiu o imóvel para a Secretaria de Estado da Saúde, pelo Decreto 52.419. A princípio, o gerenciamento seria feito em parceira com a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), porém a parceria foi rompida no mesmo ano. A assessoria de imprensa da instituição não informou o motivo.
Estava prevista também uma parceira com o Hospital das Clínicas de São Paulo. Segundo a instituição, os médicos do núcleo forense fizeram apenas os primeiros laudos dos internos e não voltaram a trabalhar para a unidade. A assessoria de imprensa do hospital ressaltou que a literatura psiquiátrica internacional considera que é inapropriado fechar um diagnóstico psiquiátrico antes dos 18 anos, devido à formação cerebral e social dos jovens.
“É um diagnostico que se criou para o qual não existe tratamento, conceitualmente falando. O diagnostico foi produzido historicamente para o mundo adulto e, como hoje eles são adultos, é aceito pelo juiz. Mas quando ele foi feito eles tinham seus 15, 16, 17 anos”, lamenta Adolpho.
A unidade é composta por cinco casas em torno de um pátio, cada uma ocupada por um interno. No entorno existem salas de atendimento e saúde. No início do ano passado eram ministradas aulas da educação básica para os internos, porém a Secretaria de Saúde não confirmou se elas continuam. Um dos jovens já havia concluído o ensino médio e não teve chance de ingressar no superior.
As visitas ocorrem aos sábados e domingos, das 9h às 16h. Um segurança da Fundação Casa, localizada ao lado da unidade, que preferiu não se identificar, disse nunca ter visto grande movimentação por ali. Um ambulante que trabalha em frente ao local, que também não quis se identificar, confirmou que não vê visitantes com frequência. A RBA esteve no local por duas vezes e não conseguiu levantar informações, mas identificou funcionários com uniforme da Secretaria de Administração Penitenciária no local.
Por conta da presença dos agentes penitenciários em uma instituição não penal, o Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedeca) de Interlagos instaurou um procedimento jurídico no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça, em 2009, pedindo um parecer sobre o caso.
À RBA, o Conselho informou que o processo corre em segredo de justiça. Para o advogado Adolpho, a explicação foi outra, segundo ele: “Insisti em pedidos de informações sobre a tramitação e uma das notícias que obtive na assessoria do relator do processo, conselheiro Herbert Carneiro, é que o processo estava desaparecido do gabinete.”
Segundo Adolpho, o quadro de pessoal da unidade conta com psicólogo e assistente social. “Eles fazem um trabalho de perguntar se os meninos querem assistência. É muito mais na pergunta que na oferta. O atendimento é para aplacar a dor de estar lá e não para um tratamento especifico”, diz o advogado. “Eles estão bem e vão se adaptando. Estão firmes e por serem minimamente organizados psiquicamente, não caem nas valas dos diagnósticos costumeiros de depressão e surto.”
Segundo o advogado, a maior parte dos agentes penitenciários da unidade vem de presídios de Sorocaba, em esquema de revezamento, ficando um tempo em casa e outro no equipamento, para não criar vínculos trabalhistas. Já os funcionários da área da saúde foram transferidos.
A ação civil pública ainda percorrerá um longo caminho antes de ser julgada. O processo havia sido remetido à justiça paulista, porém, por decisão do Tribunal Regional Federal, retornou à esfera federal.
“Há diretos humanos fundamentais em jogo e por isso pode ser julgado na justiça federal. Além disso, a União é ré junto com o estado, porque existem dois relatórios da ONU que recomendam o fechamento da unidade. Qualquer documento de um organismo internacional se dirige à presidência”, afirma o advogado.
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