Durante julgamento, viúvas da ditadura celebram Ustra e Fleury

Portal Plantão Brasil
16/12/2013 19:10

Durante julgamento, viúvas da ditadura celebram Ustra e Fleury

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2712 visitas - Fonte: Viomundo

Pela primeira vez na história, torturadores são julgados em uma ação penal



Ex-presos políticos testemunham contra agentes da ditadura processados pelo Ministério Público Federal pelo desaparecimento de Edgar de Aquino Duarte



Por Tatiana Merlino, especial para o Viomundo*



Eram muitos homens. De um deles, Carlos Alberto Brilhante Ustra, levou um safanão. Caída, ouviu: “Foda-se, sua terrorista!”. Foi arrastada para a sala de tortura. Lá, arrancaram-lhe a roupa. Na cadeira do dragão, levou choques na vagina, ânus, seios, umbigo, ouvidos. Também foi colocada no pau-de-arara, submetida a sessões de palmatória, que esfolaram-lhe a pele. Na manhã seguinte, acordou nua, com um homem em cima de seu corpo, tentando estuprá-la.



Era Lourival Gaeta, que usava o codinome de “Mangabeira”. O mesmo torturador masturbou-se enquanto ela estava amarrada à cadeira do dragão. Ao ejacular, jogou o sêmen em cima de seu corpo. Enquanto era torturada, Ustra entrava na sala e gritava: “Essa terrorista tem que falar!!”.



O testemunho das torturas sofridas pela ex-presa política, à época militante do Partido Comunista do Brasil, Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha, sequestrada em 28 de dezembro de 1972 junto com seu marido César Augusto Teles e seu companheiro de organização Carlos Nicolau Danielli, e levada à Operação Bandeirantes (Oban), foi dado na tarde de quarta-feira, 11, em audiência na 9ª Vara Criminal da Justiça Federal em São Paulo.



Maria Amélia foi uma das testemunhas de acusação no processo penal proposto pelo Ministério Público Federal (MPF), em 17 de outubro do ano passado, contra o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra e os delegados de Polícia Alcides Singilo e Carlos Alberto Augusto (conhecido também como Carlinhos Metralha e Carteira Preta) por envolvimento no sequestro qualificado do corretor de imóveis Edgar de Aquino Duarte, em 1971, durante a ditadura militar (1964-1985).



Verdadeira identidade



De acordo com o MPF, Duarte, ex-fuzileiro naval e ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), foi preso ilegalmente nas dependências do DOI-Codi e depois levado ao Dops, onde ficou até 1973. Duarte era amigo de José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, que recém retornara de Cuba e com quem passou a morar em São Paulo.



O MPF sustenta que Duarte foi sequestrado pela ditadura por conhecer a verdadeira identidade de Cabo Anselmo, que se tornou agente infiltrado da repressão nas organizações de esquerda.



A tese jurídica do MPF presente no processo penal é a de que enquanto não se encontrar o corpo de Duarte, ele permanece desaparecido, configurando um crime permanente. “Como os fatos ainda estão acontecendo, não há como se falar em Lei de Anistia”, explicou o procurador da República Andrey Borges de Mendonça, um dos autores da ação. Ou seja, tal crime não poderia ser protegido pela Lei de 1979, já que continuaria vigorando após a sua promulgação.



Ustra comandou o Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) de São Paulo no período de 1970 a 1974. Augusto foi investigador do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), onde integrava a equipe do temido delegado Sérgio Paranhos Fleury. E Singilo foi delegado do Dops. Durante três dias, 9, 10 e 11 de dezembro, as testemunhas foram ouvidas pelo juiz titular da 9ª Vara Criminal, Hélio Egydio Nogueira, que conduziu as audiências.



[Veja aqui a série Crianças e Tortura, do Jornal da Record, onde Amelinha dá depoimento]



No banco dos réus



O evento foi histórico, já que pela primeira vez agentes da ditadura sentaram-se no banco dos réus numa ação criminal. Ustra alegou problemas de saúde e não compareceu às sessões. Mas Alcides Singilo e Carlinhos Metralha literalmente sentaram no banco dos réus. Compareceram aos três dias de audiência.



As testemunhas confirmaram que Ustra, Augusto e Singilo tinham conhecimento e tiveram envolvimento na captura ilegal de Edgar de Aquino Duarte, que teria sido levado ao DOI-Codi e depois ao Dops. “A primeira vez que eu o vi ele estava encapuzado”, relatou Maria Amélia, que o encontrou no Dops. “Eu vi aquele homem alto, magro, usando um capuz”.



Depois de um tempo, o capuz do preso foi retirado e Maria Amélia o viu passando pelo corredor várias vezes. “Ele dizia: ‘tiraram meu capuz, vão me matar’”. Amelinha também ouviu Duarte ser ameaçado por um agente do órgão. “Você vai morrer porque sabe um segredo de Estado.” Segundo ela, não havia ninguém ali que não soubesse da presença de Duarte no centro de repressão.



“O Singilo era delegado do Dops e cuidava de tudo lá. Ele me chamou várias vezes para fazer cartório, ou seja, confirmar o que o DOI dizia a meu respeito”, disse. Amelinha relatou ainda que várias vezes foi ameaçada por Singilo. “Ele dizia que ia me entregar para o Fleury.”



Sobre Carlos Alberto Augusto, disse não tê-lo conhecido pessoalmente. “Tive a sorte de não tê-lo conhecido. Mas conheço de nome. Ele era famoso por ser violento, por ser torturador.” Quando o juiz Hélio Egydio Nogueira questionou Amelinha sobre Augusto, este levantou-se, e disse, em tom de provocação: “Sou eu”.



Virgilio Lopes Enei, que foi advogado de Duarte, disse em juízo que esteve várias vezes no Dops e no DOI procurando-o. “No Dops fui recebido diversas vezes pelo delegado Singilo, que negava que ele estivesse preso ali.”



Viúvas da ditadura



Presentes à audiência, além de familiares de mortos e desaparecidos e ex-presos políticos, havia cerca de dez apoiadores dos delegados.



Durante o relato de Amelinha sobre sua tortura, os apoiadores, entre os quais havia uma única mulher, riam, falavam alto e faziam comentários ofensivos.



A mulher, com um sorriso de escárnio permanente no rosto e mascando chiclete, começou a lixar as unhas com força, impedindo que as pessoas ouvissem o relato.



Depois de duas reclamações, um funcionário do fórum pediu que ela interrompesse a atividade.



Dois dos homens mantiveram-se de óculos escuros durante toda a audiência. Um deles, na faixa dos 30 anos, trajando um terno verde-oliva uns dois números acima de seu tamanho, não quis se identificar, mas negou ser representante do Exército.



Na saída, os mesmos apoiadores empunhavam cartazes com os dizeres “Viva Metralha, fora comunistas”, “Carlinhos, não se assuste com a comissão da farsa – o Brasil é Metralha” e “Comissão da mentira, Fora!”.



Os réus negam participação no sequestro de Duarte. Singilo disse sentir-se injustiçado. “Eu não conheci o Edgar. Trabalhei para o Estado fazendo inquéritos, combatendo a subversão e para livrar a pátria do comunismo, do proletariado.”



E negou saber da existência de tortura no Dops. “Eu ficava no segundo andar e nunca desci na carceragem”.



No primeiro dia de audiência, instantes antes do juiz dar início à sessão, Augusto disse: “Estou vendo aí gente que foi presa. Eles querem tirar sarro da gente. Ficam me olhando como se eu fosse delinquente”, disse, referindo-se aos ex-presos políticos que estavam presentes. Porém, nenhum deles havia se manifestado. “Saibam que eu continuo trabalhando, continuo assinando Boletins de Ocorrência”, disse, levantando-se. A provocação de Metralha foi repreendida pelo juiz.



Durante os três dias de audiência, Singilo adotou uma postura mais discreta. Já Augusto tentou provocar ex-presos políticos presentes à audiência, falou alto, riu e levantou-se no meio da audiência para entregar um papel aos jornalistas, pedindo que anotassem seus telefones, endereços e emails.



Ao final da sessão de audiências de acusação, na quarta-feira, Augusto, que segue na ativa como delegado de polícia de segunda classe no município de Itatiba, disse: “Ustra e Fleury são heróis nacionais, profissionais da segurança deste país. Com o falecimento de um e o outro aposentado, a violência está nesse estado que estamos presenciando hoje. Graças às Forças Armadas o comunismo não está implantado neste Brasil. Felizmente fiz parte da equipe do dr. Fleury, herói nacional”.



Questionado sobre como se sente sentado no banco dos réus, disse: “Humilhado, me sinto fracassado profissionalmente”. Em maio, Augusto foi alvo de um “esculacho” promovido pela Frente do Esculacho Popular (FEP) na cidade de Itatiba, pouco depois de ser nomeado delegado da cidade. O MPF pediu o afastamento de Augusto de suas funções administrativas durante o processo, mas o juiz não acatou ao pedido.



Participação na prisão



O ex-preso político Ivan Seixas relatou ter ouvido de Edgar de Aquino Duarte, com quem esteve preso no Dops, que Carlos Alberto Augusto foi um dos responsáveis por sua prisão. “Estávamos numa cela coletiva quando o Metralha passou. O Edgard disse: ‘Eu fui preso pela equipe do Fleury. E esse foi um dos que me prendeu’”, disse Seixas. “Ele [Augusto] andava com uma metralhadora, por isso tinha esse apelido”, explicou. Seixas, que foi preso aos 16 anos junto com seu pai, Joaquim Alencar de Seixas, ambos militantes da organização MRT (Movimento Revolucionário Tiradentes), encontrou com Duarte algumas vezes, nas várias em que foi levado ao Dops. “A última foi em janeiro de 1973. Ele estava com o cabelo grande, magro e com os dentes estragados”, lembrou o ex-preso político. “Ele dizia: ‘isso não tem fim, eu sei que vou morrer’. Ele estava muito desanimado”.



Assim como Seixas e Amelinha, os ex-presos políticos Lenira Dantas, Artur Scavone, José Damião, Pedro Rocha e César Augusto Teles confirmaram que estiveram com Edgar de Aquino Duarte no DOI-Codi e no Dops e que Ustra era responsável e sabia de todas as torturas e prisões ocorridas no DOI, incluindo a de Edgar. “Fui torturado por subordinados dele, na presença dele [Ustra]”, declarou José Damião, hoje procurador do Estado aposentado.



César Augusto Teles, casado com Amelinha e preso junto com ela, no dia 28 de dezembro de 1972, recorda-se do tratamento recebido por parte de Ustra. “Levei choques, palmatórias, tudo amarrado na cadeira do dragão. Tudo determinado pelo Ustra.” Lenira Dantas disse, sobre Ustra: “Ele não participava diretamente, mas entrava para dizer: ‘Pergunta onde está fulano’ ou para deixar um papel com informações a serem obtidas”. Já sobre Carlinhos Metralha, revelou: “Nós nos conhecemos. Toda vez que faziam acareação comigo ele vinha espancando. Não sabia fazer nada sem ser com agressão, com empurrão”.



Confirmação



De acordo com o procurador da República Andrey Borges de Mendonça, “as testemunhas comprovaram o que consta na acusação, que Edgar de Aquino estava sob a responsabilidade dos órgãos de repressão, que esteve no DOI e no Dops sob responsabilidade dos acusados. Elas confirmaram aquilo que já havia sido colhido na fase extra judicial”.



Segundo ele, o que quer se mostrar com a ação “é que essas pessoas não fizeram nenhum bem para a nação. São pessoas que se autoproclamam heróis, que dizem que fizeram bem para a nação. Elas devem ser punidas para que isso nunca mais aconteça. O que fizeram foi instituir o terrorismo de Estado. Se há algum terrorismo, foi do Estado”.



Na visão do MPF, explica o procurador, os desaparecimentos e as torturas de hoje estão ligados a essa política de Estado que veio da ditadura “e que nunca foi realmente renegada. É nisso que reside a importância histórica desse processo”.



Sobre as penas, em caso de condenação, o procurador esclarece que penas assistidas de direito, ou seja, prestações de serviço à comunidade, são possíveis apenas para crimes que não foram cometidos com violência ou grave ameaça. “Mas mais importante que as penas é que eles sejam condenados”, avalia.



Os advogados dos acusados arrolaram, entre outras testemunhas, Paulo Maluf e o vice-presidente do Brasil Michel Temer. As audiências de defesa ocorrerão em 27 de março e 1º e 2 de abril.



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