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Quatro funcionários que trabalharam para Jair Bolsonaro (sem partido) em seu gabinete na Câmara dos Deputados retiraram 72% de seus salários em dinheiro vivo. Eles receberam R$ 764 mil líquidos, entre salários e benefícios, e sacaram um total de R$ 551 mil.
O UOL identificou os saques ao verificar documentos e quebras de sigilos bancário e fiscal da investigação do "escândalo da rachadinha". Os dados financeiros abrangem 12 anos, de 2007 a 2018, período em que esses assessores foram nomeados tanto para o gabinete de Flávio Bolsonaro na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) quanto para o de Jair. Dessa forma, é possível saber como movimentaram o contracheque da Câmara dos Deputados.
As operações em dinheiro vivo realizadas pelo quarteto são um indício de que a prática ilegal de devolução de salários de assessores também ocorreu no gabinete de Jair Bolsonaro, quando ele exerceu o mandato de deputado federal.
Procurada desde quarta-feira (10) por email, telefone e mensagens no WhatsApp, a Presidência da República não respondeu aos questionamentos.
Esta é uma das quatro reportagens realizadas pelo UOL a partir da análise de dados de 100 quebras de sigilos bancários de suspeitos de envolvimento na "rachadinha".
O UOL teve acesso às quebras de sigilo em setembro de 2020, quando ainda não havia uma decisão judicial contestando a legalidade da determinação da Justiça fluminense, e veio, desde então, analisando meticulosamente as 607.552 operações bancárias distribuídas em 100 planilhas -uma para cada um dos suspeitos. O STJ (Superior Tribunal de Justiça) anulou o uso dos dados resultantes das quebras no processo contra Flávio, mas o Ministério Público Federal recorreu ao STF (Supremo Tribunal Federal). O UOL avalia que há interesse público evidente na divulgação das informações que compõem estas reportagens.
Método da rachadinha
O intenso volume de saques dos assessores do pai é bastante semelhante aos dos funcionários do filho. Esse padrão chama atenção porque foi identificado pelo MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro) como parte do método da suposta organização criminosa que atuava dentro do gabinete de Flávio na Alerj.
A partir dos saques, os salários eram transformados em dinheiro vivo e entregues a operadores da "rachadinha".
Os cálculos do UOL consideram os saques que, com certeza, têm origem nos salários recebidos. Ou seja, não é possível que esses valores sacados sejam fruto de outras fontes de renda.
O uso constante de dinheiro vivo levanta suspeitas porque dificulta o rastreio pelos órgãos de controle, apontam especialistas no combate à corrupção e investigadores.
"O alto percentual de uso de dinheiro em espécie é um indicativo de ato ilícito. Se torna ainda mais forte quando se considera que várias pessoas, de um mesmo local de trabalho, agiram de maneira quase idêntica", afirma o procurador de Justiça em São Paulo Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção.
Flávio foi denunciado em novembro passado pelo MP-RJ pelo desvio de R$ 6,1 milhões da Alerj, dos quais R$ 4,23 milhões foram obtidos em dinheiro vivo. Na denúncia ao Tribunal de Justiça do Rio, os procuradores escreveram que "no período de atuação da organização criminosa na Alerj também ocorreram centenas de saques nas contas bancárias de outros ex-assessores, em valores expressivos e próximos às datas dos créditos da Alerj de forma inusual".
Bruno Brandão, diretor-executivo da Transparência Internacional, afirma que, em tese, situações como apresentadas pela reportagem são "consideradas uma movimentação atípica e suspeita em qualquer país do mundo onde haja uma legislação anti-lavagem de dinheiro, que siga minimamente o que é recomendado internacionalmente".
Saque de 77% do salário
O assessor parlamentar Fernando Nascimento começou a trabalhar no gabinete de Jair Bolsonaro em maio de 2009, aos 24 anos. Ficou no cargo até maio de 2014. Nesse período, recebeu R$ 164 mil da Câmara dos Deputados. Sacou pelo menos R$ 126 mil. Isso dá 77% do salário. Em alguns meses, Nascimento sacou 100% do que recebeu.
Na época em que estava nomeado no gabinete de Jair, Nascimento atuou na divulgação do trabalho de outro Bolsonaro na internet: Flávio. Foram mais de 300 tuítes sobre o então deputado estadual e poucos sobre o pai deputado federal. Em alguns posts, Nascimento indicou que estava dentro da Alerj.
Em abril de 2010, escreveu no Twitter: "@alerj Pq o sinal da TVALERJ é tão ruim na própria ALERJ?". Em agosto de 2011, disse: "Bombeiros RJ estão dando voltas no Plenário da ALERJ! - Se fossem cronometradas seriam mais rápidas do que as do Rubinho #distrair".
Ao sair da Câmara dos Deputados, Nascimento foi nomeado por Flávio na Alerj. Por isso, acabou tendo o sigilo bancário quebrado no caso da "rachadinha". Em 2019, quando Flávio assumiu cadeira de senador, Nascimento e sua mulher foram nomeados para cargos no Senado. Advogado, ele cuida das redes sociais de Flávio Bolsonaro até hoje.
Procurado pela reportagem, Nascimento pediu que o contato fosse intermediado pela assessoria de Flávio Bolsonaro. Não houve resposta.
Prática costumeira
O saque de 70% ou mais dos salários também foi uma prática costumeira de outros dois secretários parlamentares de Jair Bolsonaro que aparecem nos dados da investigação do MP-RJ.
Um deles é Nelson Rabello, militar reformado que serviu no Exército ao lado do atual presidente. Rabello começou sua trajetória funcional com a família Bolsonaro em 2005, no gabinete de Carlos, na Câmara Municipal do Rio. Ficou um mês e depois entrou no rol de assessores de Jair em Brasília, até 2011. Depois, foi nomeado no gabinete de Flávio e, mais à frente, voltou a Carlos. Em 2017, de novo, Jair.
No total, Rabello passou quase oito anos na Câmara dos Deputados — seis deles contemplados pela quebra de sigilo. Os dados mostram que sacou 70% do que recebeu — R$ 134 mil dos R$ 192 mil pagos pela Câmara dos Deputados. Apesar do rendimento, em 2012, Rabello chegou a entrar na Justiça para negociar uma dívida de R$ 3.200.
Em 2018, quando Bolsonaro foi eleito presidente, o percentual de saques de Rabello foi maior, 88%.
Outro funcionário nessa situação é Daniel Medeiros, que foi secretário parlamentar de Bolsonaro entre 2014 e 2017. Começou recebendo cerca de R$ 1.600 da Câmara dos Deputados. Oito meses depois, o salário subiu para mais de R$ 5.000. Mais dois meses, e superou R$ 10.000.
O pagamento era depositado em uma agência na Vila Valqueire, bairro da zona oeste do Rio conhecido por abrigar militares e policiais. No total, Medeiros sacou 72% do salário. Pelo menos metade do valor em saques foi retirada na própria agência. Os demais endereços de saques listados são todos no Rio de Janeiro.
Quem conheceu Medeiros nesse período diz que ele fazia bicos como segurança e costumava emprestar um carro para Fabrício Queiroz, o policial militar reformado tido como operador de Flávio. Medeiros foi companheiro de Graziella Jorge Robles de Faria, que trabalhou com Flávio na Alerj, de 2013 até 2019. Ela foi incluída pelos promotores entre os funcionários que sacaram todo o salário em espécie.
A reportagem telefonou e mandou mensagens para Daniel Medeiros e Nelson Rabello, mas não obteve retorno.
Pescaria e salário
Um quarto funcionário de Jair Bolsonaro aparece na quebra de sigilo. Jaci dos Santos, sargento reformado do Exército, trabalhou no gabinete do então deputado federal por oito meses, de dezembro de 2011 a julho de 2012. Sacou 45% de tudo o que recebeu da Câmara dos Deputados.
Pouco depois de começar no serviço, em janeiro de 2012, acompanhou Jair Bolsonaro em uma pescaria na Estação Ecológica de Tamoios. Os dois foram multados pelo Ibama, pois é proibido pescar no local. Além deles, estava no barco o caseiro de Bolsonaro, Edenilson, marido de outra assessora da família, conhecida como Wal do Açaí, funcionário fantasma do gabinete na Jair na Câmara dos Deputados.
Santos era motorista e uma espécie de "faz-tudo" da família Bolsonaro. "Dirigia, fazia faxina", afirmou Santos à Folha de S.Paulo em 2019, quando o jornal publicou que o ex-funcionário comprou uma van do presidente.
Contatado pelo UOL, Santos perguntou quanto receberia para dar entrevista. Após a negativa de pagamento, disse: "Pergunta para o Ministério Público e me fala porque eu também não sei. Eu não tenho nada para me entender com a senhora".
Nascimento, Rabello, Medeiros e Santos não tiveram crachá funcional na Câmara dos Deputados, segundo dados obtidos pela LAI (Lei de Acesso à Informação). Também não tiveram email de contato oficial na Câmara.
Repasses da filha de Queiroz
Os dados da quebra de sigilo bancário mostram que uma quinta funcionária de Jair Bolsonaro transferiu a maior parte de seu salário para Fabrício Queiroz. Trata-se de Nathália Queiroz, filha dele.
Depois de constar por dez anos como assessora na Alerj, Nathália foi nomeada na Câmara dos Deputados em 2016 e lá ficou até 2018. Nesse mesmo período, trabalhou como personal trainer e em academias de ginástica no Rio.
Nathália nunca teve crachá funcional na Câmara dos Deputados, segundo dados obtidos pela LAI. Também não teve email de contato oficial na Câmara
O UOL descobriu na quebra de sigilo de Nathália que ela ficava com R$ 2 mil mensais do salário que recebia na Câmara dos Deputados — que variava de R$ 7 mil a R$ 10 mil. Até um dia depois que o dinheiro caía na conta, Nathália transferia o restante para o pai. No total, recebeu R$ 233 mil e repassou R$ 151,5 mil para Fabrício Queiroz — 65%.
Procurada, a defesa de Nathália Queiroz não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Outros operadores
No caso de Flávio Bolsonaro, os investigadores identificaram que os salários recebidos pelos assessores ora eram transferidos para Fabrício Queiroz, ora eram sacados e retornavam em espécie aos operadores da rachadinha.
Há suspeitas sobre a existência de outros operadores, como Mariana Mota, amiga de Ana Cristina Valle, ex-mulher de Jair Bolsonaro. O UOL mostrou que Mariana também recebia salários de outros assessores e pagava o aluguel de Léo Índio, sobrinho de Bolsonaro.
Por uma questão legal, os promotores precisam focar exclusivamente em informações relacionadas a Flávio, alvo da investigação. Por lei, Jair Bolsonaro não pode ser investigado por atos praticados antes de assumir a Presidência da República.
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