5269 visitas - Fonte: Folha de São Paulo
O avanço da pandemia do coronavírus nos Estados Unidos vem repetindo o mesmo padrão da Europa, com os locais menos afetados inicialmente concentrando agora a maioria dos mortos.
Nos dez estados que sofreram mais no primeiro semestre, como Nova York e Nova Jersey, o total de óbitos hoje equivale a apenas 13% do pico. Nos dez inicialmente mais poupados, como Texas e Idaho, a taxa é de 501%.
Na Europa, que vem adotando novas medidas restritivas à circulação, os países mais afetados no início do ano registram hoje cerca de 1/5 das mortes em relação ao pico e 40% das hospitalizações.
Na Itália, a região da Lombardia, duramente castigada no começo, tem hoje 18% das internações em UTIs em relação à pior fase. Na Sicília, antes poupada, 132% mais.
O comportamento das curvas de óbitos nos dois lados do Atlântico Norte é considerado fundamental para o Brasil se preparar para os próximos meses.
Na maioria dos estados brasileiros, o número de mortes permaneceu elevado por um período longo, numa espécie de platô, o que pode sinalizar a possibilidade menor de repique.
Mantidos os padrões norte-americano e europeu, regiões e municípios brasileiros menos afetados no começo devem se preocupar mais com o aumento de casos, mantendo, por exemplo, as estruturas de saúde.
Reportagem da Folha nesta semana mostrou que o Brasil já fechou 65% dos leitos de UTI abertos desde o início da pandemia —que diminuíram de 14.843 para 5.233.
Os EUA têm cerca de 330 milhões de habitantes. Os estados mais afetados nos primeiros seis meses do ano e que agora têm as mortes relativamente controladas concentram menos de um quarto da população (74 milhões).
O restante vive, portanto, em regiões que ainda podem registrar aumentos significativos de mortes.
Sem contar os 20 estados mais ou menos afetados no primeiro semestre, há cerca de 211 milhões de pessoas em regiões com óbitos em alta. Nesses locais, as mortes já representam 137% em comparação ao pico.
Os dados, compilados pelo Instituto Estáter a partir de fontes oficiais, mostram que os estados mais afetados desde o início contabilizam cerca de 1.300 óbitos por milhão de habitantes. Nos demais (com quase 260 milhões de habitantes), as mortes consolidadas equivalem a menos de 500 por milhão.
Atingindo mais os estados inicialmente poupados, a média móvel de novos casos nos últimos sete dias nos EUA atingiu seu maior nível desde o início da epidemia e está em torno de 70 mil. As hospitalizações também cresceram, com mais de 40 mil internados por uma semana consecutiva, o que não ocorria desde agosto.
Segundo a Universidade Johns Hopkins, na média dos últimos sete dias, os novos casos nos EUA cresceram 23%; muito acima dos 2,9% de aumento no total de testes.
“Há uma desigualdade pandêmica grande nos Estados Unidos, o que pode indicar o risco de uma onda de infecções ainda prolongada”, diz Pércio de Souza, presidente do Estáter, que acompanha a evolução da epidemia de forma detalhada e regionalizada desde o início.
“Não se deve ignorar o que tem acontecido ali e na Europa para entender o que pode ocorrer no Brasil. As evidências mostram que medidas restritivas como confinamento podem protelar o impacto da infecção se implementadas tempestivamente”, diz Souza.
Em sua opinião, os governos vêm fracassando em adotar reações mais equilibradas, baseadas em dados, que preparem e conscientizem a população para a convivência com o vírus.
Infectologistas ouvidos pela Folha consideram fundamental acompanhar as curvas de infecções e mortes na Europa e nos EUA para que o Brasil se prepare para as próximas semanas e meses. Com um total de mortes perto de 160 mil, o Brasil hoje registra, segundo a média móvel, cerca de 450 óbitos diários, o menor patamar desde maio.
Para Esper Kallás, médico e professor da Faculdade de Medicina da USP, o comportamento epidemiológico da Covid-19 segue o roteiro de o vírus infectar pessoas em locais mais suscetíveis, e onde ainda não havia circulado tanto.
Segundo ele, não existem até aqui evidências importantes sobre casos de reinfecção, o que poderia explicar o ressurgimento da epidemia e das mortes em locais já bastante afetados.
“Mas é óbvio que a retomada das atividades favorece a circulação do vírus em todos os lugares.”
Segundo Ederlon Rezende, conselheiro da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib), o cenário brasileiro para enfrentar um eventual repique de casos seria mais tranquilo diante do aprendizado das equipes médicas em lidar com o vírus e os pacientes.
Na chefia da UTI do Hospital do Servidor Estadual, em São Paulo, Rezende contabiliza dez pacientes com necessidade de ventilação mecânica hoje, ante 70 nos picos de junho e julho.
“Já sabemos que as chances de contaminação em locais abertos são muito menores. Com a chegada do verão no Brasil, o risco pode diminuir”, diz.
Gerson Salvador, infectologista do Hospital Universitário da USP, alerta, no entanto, que o verão europeu, com cenas de aglomerações e gente sem máscara, pode ter contribuído para o repique da epidemia.
Pesquisa do governo da França mostrou que, em meados de maio, 72% das pessoas evitavam aglomerações e encontros pessoais. Em setembro, a taxa havia caído para 32%.
“Onde está havendo flexibilização, o importante é não relaxar nos cuidados”, afirma.
Para Paulo Lotufo, epidemiologista e professor da Faculdade de Medicina da USP, mesmo nos locais já mais duramente afetados, não se pode considerar que a população tenha adquirido a chamada imunidade coletiva —que só seria possível com uma vacina realmente efetiva.
Lotufo afirma, porém, que a redução ou desaparecimento de anticorpos contra o coronavírus em pessoas já infectadas, como algumas pesquisas vem mostrando, não significa a perda de imunidade.
“Existe todo um sistema de memória no organismo que, ao se deparar novamente com o vírus, pode ser reativado."
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