5398 visitas - Fonte: O Globo
RIO — Enquanto a Amazônia queima e órgãos ambientais murcham com a falta de verbas, o Ministério da Defesa empenhou pouco mais de R$ 145,3 milhões para a compra de um microssatélite que fará o monitoramento da devastação da floresta. A função já é exercida — e, segundo especialistas, com tecnologia tão ou mais desenvolvida — por outro órgão do governo federal, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Não há informação sobre licitação.
O custo do novo microssatélite é 48 vezes maior do que a verba prevista no orçamento deste ano (R$ 3,03 milhões) para projetos de monitoramento da terra e de risco de incêndios. O conjunto abrange o Prodes e o Deter, que emitem boletins sobre o desmatamento da Amazônia, e o Programa Queimadas, responsável por detectar focos de calor em todo o país.
O GLOBO teve acesso à nota de empenho da verba, realizada no dia 30 de junho em favor do Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), subordinado ao Ministério da Defesa. O microssatélite será custeado por recursos recuperados pela Operação Lava-Jato — do R$ 1,06 bilhão destinados a ações ambientais, R$ 530 milhões couberam à pasta.
A nota de empenho aponta que a verba do microssatélite ainda não foi liquidada. Ou seja, o recurso está destinado e reservado para tal fim, mas ainda não houve a entrega do bem e o pagamento definitivo. Ver uma movimentação financeira tão grande ligada à compra de um material sem definir sua licitação é considerado atípico. Significa que o dinheiro está “trancado” no órgão — neste caso, o Censipam. Especialistas avaliam que esta não seria a conduta desejada, considerando a necessidade emergencial de verbas para controlar o desmatamento e as queimadas na Amazônia.
— De fato, é um caso estranho. Haverá uma licitação seguindo a legislação? Ou simplesmente um fornecedor será contratado, sem qualquer competição entre eventuais interessados? — questiona o economista Gil Castello Branco, secretário-geral da Associação Contas Abertas.
Instituto enfraquecido
Ex-diretor do Inpe, Ricardo Galvão alerta que a aquisição de um microssatélite pela Defesa pode enfraquecer o instituto:
— Sempre houve um embate sobre o controle do programa espacial, onde o Inpe desenvolve satélites e a Força Aérea cuida dos foguetes, mas agora ela decidiu lançar uma proposta orçamentária para comprar o seu próprio satélite. Isso é preocupante para o Inpe, significa uma perda de protagonismo — alerta.
O físico foi exonerado no ano passado, ao rebater as acusações do presidente Jair Bolsonaro, que afirmou que as métricas de desmatamento do Inpe “não coincidem com a verdade”. Galvão foi eleito um dos dez cientistas de 2019 pela revista “Nature”.
Em nota enviada ao GLOBO, o Ministério da Defesa afirma que o Censipam desenvolve desde 2016 o Projeto Amazônia SAR, com o objetivo de implantar o Sistema Integrado de Alerta do Desmatamento por Radar Orbital (SipamSAR), cuja tecnologia é capaz de enxergar o terreno mesmo que ele esteja sob nuvens. A pasta destaca que a Amazônia registra fortes chuvas durante oito meses do ano.
“A partir da operação do seu primeiro satélite SAR, o Estado brasileiro, incluindo órgãos como o Ibama e o Inpe, terá acesso a imagens de radar, que não sofrem interferência de nuvens, e poderá realizar um melhor monitoramento territorial do país”, diz o comunicado, acrescentando que a tecnologia também pode detectar outros crimes ambientais, como garimpo ilegal e pistas de pouso clandestinas.
Gilberto Câmara, secretário executivo do Group on Earth Observations, ligado à Organização Meteorológica Mundial, discorda da análise do ministério. O cientista da computação avaliou o preço e o tamanho do equipamento, comparando-o depois a outros satélites usados no monitoramento de florestas. E concluiu que o SAR não terá a estrutura necessária para fazer um trabalho diferenciado daquele já realizado pelo Inpe:
— Seu tamanho e orçamento condizem com um satélite SAR de banda X, que é o tipo mais simples, e cujas imagens não são adequadas para um sistema operacional de monitoramento de florestas tropicais — explica. — Um satélite pequeno tem variações na órbita, causadas por fatores como o vento solar e a própria gravidade, e é difícil garantir que ele volte ao seu percurso original, porque isso demanda um reparo por giroscópios, que são sensores grandes demais para estes satélites. Então, eles não têm órbita fixa, e sua possibilidade de chegar ao ponto original é limitada.
‘Cloroquina da Amazônia’
Câmara acrescenta que o microssatélite ainda terá gastos adicionais, como sua operação e lançamento. Além disso, há satélites radar mais sofisticados do que o do Censipam, como o europeu Sentinel-1 (banda C) e o japonês Alos-2 (banda L), cujos dados estão disponíveis livremente.
— Não há evidência verificável, um relatório técnico ou artigo científico, que comprove que exista sequer um projeto viável de um sistema de monitoramento do Censipam. É a cloroquina da Amazônia — ressalta. — Os militares estão desesperados para ter o controle da narrativa sobre o desmatamento do país. Mas eles jamais teriam a credibilidade para fazer um projeto alternativo ao Prodes e ao Deter.
O cientista dirigiu o Inpe entre 2005 e 2012, no governo Lula. Câmara revela que autoridades o orientaram a rever a medição do desmatamento, porque os números estariam elevados demais, mas, apoiado pela então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, recusou-se a cumprir a ordem.
Um servidor do governo federal da área, que pediu para não ser identificado, avalia que a Defesa empregaria melhor a verba se dobrasse a área analisada pelo sistema Deter Intenso. Hoje, ela corresponde a 10% da floresta, região que concentra 60% do desmatamento amazônico.
— O Deter Intenso usa imagens coletadas diariamente por cinco satélites. Já o resto da floresta é visto pelo Deter, que obtém imagens a cada dois dias vindas de dois satélites — explica. — O governo indica que comprará um tipo de satélite que é mais usado em mineração e na identificação de alvos militares.
Outro investimento possível, e ainda mais urgente, deve ser nas “ações de ponta”, diz o servidor.
— Não adianta ter uma profusão de imagens sem ações no campo para coibir os crimes ambientais. O governo insiste que o problema é a falta de dados. Quantos dos milhares de alertas foram fiscalizados? Infelizmente, os militares veem o Inpe como uma ameaça.
‘Não se justifica’
Cristiane Mazzetti, porta-voz da Campanha da Amazônia do Greenpeace, considera que o microssatélite tem “um custo muito elevado e não se justifica”.
— O Inpe já fornece todos os dados necessários para balizar ações relacionadas a fiscalização, desmatamento e incêndios florestais. Seu trabalho é reconhecido até em regiões florestais do Sudeste Asiático, que não contam com tecnologia parecida. O problema é que o governo não tem usado essas informações com eficácia — explica. — Não foi feita uma licitação ou qualquer documento citando dados técnicos que justificassem a construção do microssatélite, como uma redução do número de vezes que passará diariamente por cada área da Amazônia.
Para Alessandra Cardoso, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), a compra de um satélite pelo Ministério da Defesa demonstra o avanço da militarização da gestão ambiental do país.
— Os números mostram que o governo federal optou por depositar no ministério quase todos os recursos para o combate ao desmatamento, em detrimento de órgãos ambientais que têm o papel de fazer comando e controle, principalmente o Ibama — destaca. — Além disso, dentro da pasta da Defesa, a prioridade tem sido dedicar verbas à sobreposição dos esforços do Inpe, como é o caso do novo satélite.
Diretor do Sindct, sindicato que representa servidores de institutos científicos como o Inpe e a Agência Espacial Brasileira, Acioli Cancellier de Olivo avalia que o governo federal sinaliza que não está interessado na ciência e “prefere se escorar no obscurantismo”.
— Estamos todos preocupados, porque há uma combinação perversa da redução sistemática de recursos e uma asfixia imposta pela falta de reposição de quadros qualificados, já que não há concursos públicos. Isso leva nossas instituições de pesquisa e desenvolvimento a um estado de inanição, impossibilitando a entrega de um produto de qualidade à sociedade.
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