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POR BRENO GÓES
POR BRENO GÓES
POR BRENO GÓES
Gilberto Gil já repetiu em dezenas de entrevistas (eu tenho a pretensão de ter lido boa parte das que ele já deu) uma mesma informação: a única música do seu repertório de mais de 500 que ele não gosta de cantar é “Cálice”, uma parceria sua com Chico Buarque que ele sintomaticamente jamais gravou. Gil diz que fica incomodado por que a música é “tristonha”. Nunca vi ele com esse tipo de ojeriza de qualquer outra canção que tivesse composto.
Faz sentido, quando paramos para pensar. O Gil é conhecido por uma poética que preza por uma postura de aceitação filosófica e equilíbrio diante da dor e das coisas ruins da vida, bem como diante das coisas boas e felizes. Por um lado, mesmo na lindíssima e alegríssima “Toda Menina Baiana”, que Gil compôs pra uma de suas filhas, ele fez questão de lembrar que “toda menina baiana tem defeitos também”. Por outro, ele pode ter escrito canções de alguma forma doídas (aí está “Drão”, que não me deixa mentir), mas mesmo essas suas músicas quase sempre tem um viés de enxergar o lado bom de uma situação ruim: pensemos na dor da separação que vira pão na própria “Drão”, no “êêêê” animado que quebra a tragédia no final do “Domingo no Parque” ou na empolgação que atravessa “Aquele Abraço”, a canção do exílio mais festiva e carnavalesca da história (e também a mais bonita). Isso pra ficar só nas mais famosas. Em Gil, a tristeza vem sempre temperada de felicidade e vice-versa… quase sempre. Que eu saiba, em dois significativos momentos essa lógica é rompida: “Pé da Roseira” (não tão conhecida mas maravilhosa, de 1968) e “Cálice” (composta em 1973, lançada em 1978). São canções TRISTES em que a dor, a impotência e o desespero imperam, sem que nenhuma filosofia venha equilibrar as coisas. O “Pé da Roseira” é o desespero no âmbito privado, diante do fim do amor. O “Cálice” é o desespero público, diante do estado do mundo.
Quando Chico Buarque quis gravar o Cálice, teve que chamar o Milton Nascimento e o MPB-4, porque o Gil não quis embarcar naquela canção barra-pesada em que o substantivo “cálice” vira o verbo “cale-se” e algumas imagens poderosamente desamparadas são cantadas (“como beber dessa bebida amarga, tragar a dor, engolir a labuta?”, diz um dos versos mais tristes da língua portuguesa) em um diálogo com o “Pai”, a primeira e mais opressiva das pessoas da Santíssima Trindade. Era toda a depressão do regime oriundo do golpe civil-militar de 1964 sintetizada em quatro estrofes e um refrão inesquecível.
Isso me faz pensar no seguinte: todo o Brasil que se leva a sério enquanto tal tem que começar hoje a debater por que motivo Gil decidiu desobedecer ontem as suas convicções e cantar Cálice ao lado do Chico Buarque num ato na Lapa pela liberdade do Lula. O que há de tão forte na pauta do “Lula Livre” que faz um homem como o Gil – respeitado e amado por todos, venerável e acima de qualquer suspeita, eleitor da Marina Silva – enfrentar seus próprios demônios e cantar uma música que o incomoda tanto? Ou, pior ainda: o que será que esse cara está vendo no momento atual do mundo que o moveu a cantar versos tão absurdamente “tristonhos”? Mermão, o Gilberto Gil é o cara do “A Paz”, o cara do “A Novidade”… Ele tem várias canções igualmente políticas muito mais amenas que seriam adequadas para um comício. Tem inclusive uma outra parceria com o Chico muito bonita e sutilmente crítica ao capitalismo, que é a “Baticum”. Mas ontem ele decidiu dizer pro povo que quer “lançar um grito desumano, que é uma maneira de ser escutado”. Ele mandou o cálice. Isso é imenso, e muito pesado. Digo e repito: todo mundo que tem o mínimo de juízo na cabeça tem que tirar uns momentos hoje pra pensar por que motivo o Gilberto Gil finalmente decidiu cantar o Cálice. É uma pergunta difícil pra todos nós, porque a resposta é quase com certeza muito dolorida. Melhor seria ser filho de outra realidade menos morta, sem tanta mentira e tanta força bruta.
Mas que foi lindo foi. Chorei mesmo.
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