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É sempre bom lembrar que o principal elemento da conjuntura é o aparecimento de uma resistência formada pelos brasileiros dispostos a impedir a consumação de um golpe de Estado capaz de derrubar as conquistas democráticas conquistadas após 21 anos de ditadura militar.
Depois de afirmar sua força no plano nacional em 18 de março, nos últimos dias as mobilizações têm se multiplicado no plano local, tendo como referência um novo repúdio, a 31 de março, num protesto nacional contra o golpe de de 1964.
O debate começa a chegar as grandes fábricas de São Paulo, onde a condução coercitiva de Lula serviu de alerta para natureza processo em curso. No ABC, por exemplo, operários da Ford aprovaram um voto contra o golpe de Estado. Nas universidades, a mobilização pela democracia ganha volume. Muitas vezes um campo minado ao PT, elas se mobilizam contra o golpe. As críticas ao partido e ao governo permanecem, mas impera também a noção de que a defesa da democracia deve prevalecer.
Ao se posicionar sem hesitação na denuncia do golpe, uma larga parcela de juristas ajuda a demonstrar que o país assiste a um processo de natureza política. Não há fatos nem provas. Há interesses inconfessáveis, como nos piores momentos da história.
Essa visão explica o ambiente de divisão do país. Os lamentos sobre um país polarizado devem ser entendidos em seu significado mais amplo. Mostram a ruptura do pensamento único, a dificuldade dos poderosos de sempre para impor seu ponto de vista. O Brasil está polarizado porque uma parcela significativa de brasileiros rejeita uma saída autoritária que querem impor ao país e tenta debater uma saída sem abandonar conquistas históricas. A resistência fala a língua que une os brasileiros, que é a democracia. Seu horizonte é o respeito pela soberania popular, que elegeu Dilma e também os Constituintes que em 1988 escreveram as cláusulas que estabelecem regras para o impeachment.
Por causa disso, os golpistas têm pressa: empenhados, desde a derrota de outubro de 2014, em derrubar o governo Dilma e dar início a reconstrução conservadora do Estado brasileiro, o tempo joga contra suas intenções e pode atrapalhar seus planos. Mesmo considerando que a Lava Jato tem uma natureza política e seletiva, não se pode descartar a aparição de denúncias -- como os 300 na lista da Odebrecht -- capazes de produzir feridos e até mortos entre ilustres personagens do palanque dos arautos da moralidade.
Do ponto de vista dos golpistas, a solução ideal seria a renúncia de Dilma Rousseff, hipótese que defendem com o cinismo típico dessas ocasiões -- e que a presidente tem rejeitado sempre que surge uma oportunidade.
Uma renúncia seria uma desmoralizante prova de fraqueza política e seria apresentada como confissão de culpa. Preparando-se para enfrentar a duríssima jornada de luta que se anuncia para os próximos meses, que pode incluir disputas tensas no Congresso no Supremo Tribunal Federal -- e especialmente nas ruas -- as lideranças políticas e movimentos populares engajados na defesa da democracia ficariam sem argumentos para enfrentar uma transição que planeja arrancar pela raiz as principais conquistas históricas do período.
Acima de tudo, os pedidos de renúncia servem para esconder um problema essencial numa operação que pretende dar um golpe de Estado com a cobertura -- formal -- das regras do impeachment previstas na Constituição. O problema de fundo permanece: falta um crime de responsabilidade para enquadrar e condenar Dilma Rousseff.
Os debates mais recentes no Congresso mostram que a oposição fez uma opção fácil, rápida e inteiramente irresponsável para pedir afastamento de Dilma Rousseff -- a denúncia das pedaladas fiscais. Não custa lembrar, rapidamente, o caráter pífio dessa acusação:
1 - A primeira denúncia de pedaladas envolvia gastos do Tesouro para sustentar programas sociais mas isso deixou de fazer sentido quando se verificou que, através de uma conta suprimento mantida na Caixa, eles traziam retorno positivo, e não negativo, aos cofres públicos.
2 -- Alvo permanente de ataque dos adversários do governo, os empréstimos do Tesouro ao BNDES não resistem a um encontro de contas histórico. Aquilo que o Estado brasileiro colocou no banco de desenvolvimento -- um dos maiores do mundo -- atinge uma soma 20 vezes maior do que supostamente estaria lhe devendo.
3- Também se divulgou que o governo havia cometido um pecado contábil, empregando "decretos não numerados" para redefinir seus gastos. O termo "não numerado" até foi usado como se pudesse sugerir alguma prática oculta. Na verdade, é uma pratica corriqueira da administração pública, que toda pessoa pode acessar através do site do Palácio do Planalto. Os presidentes costumam assinar dezenas e até centenas "decretos não numerados" num único dia, como ocorreu no governo Itamar Franco. Com números diferentes, a mesma prática se viu na gestão de FHC, Lula e Dilma.
4 -O ponto essencial, contra a denúncia das pedaladas, consiste na dificuldade em apontar, no ano fiscal de 2015 -- o único em que pode ser levado em conta num pedido de impeachment -- qual teria sido o prejuízo de alterações contábeis, todas previstas em lei, realizadas de forma a não alterar as contas finais do Estado e nem mesmo os gastos autorizados de cada ministério. A dificuldade para pedir o afastamento da presidente tornou-se tecnicamente intransponível depois que, em maio de 2015, o governo Dilma realizou um contingenciamento de R$ 69,9 bilhões, o maior da história, envolvendo uma soma tão colossal que é mais razoável criticar a decisão por excesso de zelo e não por falta de cuidado no manejo das contas públicas.
A falta de uma base real para pedir o afastamento da presidente ajuda a entender o mal-estar registrado por vários analistas políticos, inclusive Roberto Pompeu de Toledo, que, na mais recente edição da VEJA, admite em tom pessimista: "Minguam as esperanças de que venha a acabar bem uma crise cuja capacidade de trazer os nervos à flor da pele só encontra paralelo nas de 1954 e 1964. As sequelas podem se estender anos a fio."
Uma das principais estudiosas da Operação Mãos Limpas, fonte de inspiração para a Lava Jato de Sérgio Moro, em entrevista recente a socióloga italiana Donatella della Porta, coloca uma questão na mesma linha. Comparando a política italiana e a brasileira, admite que pode-se esperar uma resistência popular, no Brasil, que nunca se viu na Itália da década de 1990, quando os grandes partidos políticos foram desmantelados pelas denúncias de corrupção. Autora citada pelo próprio Moro em seu conhecido artigo sobre a Mãos Limpas, Della Porta diz:
-- Os contextos brasileiros e italianos são diferentes. No caso italiano, os principais alvos da Mãos Limpas não tinham um legado que poderia ser defendido. Vendo a situação brasileira hoje, parece evidente que muitos ainda têm na memória recente reformas sociais realizadas pelos governos petistas e pretendem defendê-las. Os democrata-cristãos não tinham nada parecido para mostrar a população italiana.
Em dezembro, quando o Supremo revogou o ritual de impeachment aprovado a toque de caixa pela Câmara, o decano Celso de Mello integrou a maioria vencedora, com um voto que recomendava extrema cautela a quem pretendia obter o afastamento da presidente através dos tribunais. Em tom de advertência, o ministro recomendou um cuidado especial com o julgamento de presidentes da República, lembrando que um caso dessa natureza não poderia ser tratado como uma denúncia igual a todas as outras. Escrevi neste espaço:
"Celso de Mello aproveitou o debate para lembrar um ponto que tem sido esquecido. Sublinhou que mesmo o afastamento provisório de um chefe de governo, para que seja julgado pelo prazo máximo de 180 dias, como prevê a lei, constitui um fato tão grave, e pode ser muito prejudicial aos destinos de um país. Lembrou juristas importantes, como Sampaio Dória, que recomendavam manter uma postura ponderada no julgamento de um chefe de Estado, capaz de levar em conta não apenas aspectos jurídicos, mas também suas sequelas políticas, econômicas e sociais. Uma afirmação surpreendente, feita por um magistrado que não pode ser acusado de possuir qualquer simpatia particular pelo governo Dilma Rousseff."
Além da fragilidade em si, a denúncia de pedaladas contém um elemento de auto combustão considerável. Sua origem encontra-se no Tribunal de Contas da União, endereço de múltiplas assombrações envolvendo denúncias em Brasília, mas com uma participação especial. O ex-deputado Augusto Nardes, relator do caso no TCU, é ele próprio investigado por corrupção. Um dos casos, envolvendo uma propina de R$ 2,6 milhões, a investigação encontra-se parada no STF porque Nardes tem foro privilegiado. Em outro, apareceram R$ 500 000 na denúncia de um acerto envolvendo a empreiteira Camargo Correa.
Num país que já assiste à atuação do suíço Eduardo Cunha na condução do impeachment na condição de protagonista, a presença de Augusto Nardes como parceiro e inspirador da denúncia a ser empregada para tentar afastar Dilma equivale a uma dupla provocação. Causa um constrangimento enorme, por mais que a mídia grande se esforce para esconder a grande questão colocada do caso: verdadeiro juiz do impeachment enquanto o debate permanecer na Câmara, numa atuação que cobra isenção e distanciamento, o suíço Cunha e seu aliado do TCU respondem a acusações documentadas e graves, sem a menor relação com as insinuações e suposições -- no máximo -- que são lançadas contra Dilma Rousseff.
Cumprindo uma função essencial para o golpe, Eduardo Cunha enfrenta o risco permanente de uma explosão capaz de jogar o edifício inteiro pelos ares. É mais um elemento para justificar a pressa.
A posição estatégica de Eduardo Cunha num golpe de Estado promovido em nome da moralidade confirma uma grande verdade. Desmentindo a ordem natural das coisas no mundo político, estamos numa situação em que a farsa antecede a tragédia.
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